sábado, 13 de outubro de 2012

Além do bem e do mal

Por ignorância, passei muito tempo defendendo sozinha a sabedoria que existe no sentimento. Tentando explicar a necessidade de incorporar o sentir ao pensar. Refutando toda poesia imaculada, toda filosofia pura. 

Hoje cedo, descobri Nietzsche (e é possível que descubra Foucault em breve) em Além do bem e do mal. Logo no primeiro capítulo (Preconceito dos Filósofos), me deparei com uma inquietação tão parecida com a minha, de negação de toda a busca incansável pela verdade, pela razão pura. A aceitação do erro, da ignorância e da incerteza como condição de vida. Uma valorização linda ao que é de instinto, de sentimento, de natureza, sem os quais é inconcebível a construção de pensamento possível. 

“É preciso colocar a maior parte do pensar consciente entre as funções do instinto” // “Admito também que existam puritanos fanáticos da consciência, os quais prefeririam um certo nada a um incerto qualquer coisa” // “Consideravam como maior triunfo tornarem-se donos dos sentidos, enredando seu turbilhão em pálidos, frios e cinzentos conceitos”.

Ao ler esses trechos, lembrei-me de um texto que havia escrito tempos atrás sobre sentir. E sobre como é absurda toda racionalidade livre de corpo. Toda essa filosofia que se baseia na necessidade de buscar verdades em algum lugar livre de desejo. Por que, no fim das contas, nos pergunta Nietzsche: de onde tiramos o conceito de pensar (que pressupõe que nos conhecemos tão profundamente a ponto de sabermos que tal pensar não é querer ou talvez sentir)? O que quer dizer claro? O que quer dizer esclarecido?

Segue o texto que mencionei. Foi escrito em resposta ao excerto de Camus publicado por Felipe Resk em A sete palmos, as palavras.

Camus e toda a sua capacidade de ser racional. Racionalmente incrível, lúcido, esclarecido de suas vontades insípidas. Camus e toda a sua pretensão de controlar tudo, de acreditar que, na prática, consegue absorver as verdades todas. Camus e toda sua impotência para enxergar razão no que é sentimento, de ver que, na prática, sentimento, por si só, é passível e digno de análise. Camus e toda a sua prepotência, achando-se capaz de saber enxergar, na prática, o que é sentir. 
Quem sente, simplemente, não precisa de análise. Não precisa reduzir sentimentos a atos, nem colocá-los na ordem da inteligência. Não é necessário que exista racionalidade em sentir, uma vez que, por si só, sentir já nos diz o suficiente. É um esclarecimento bobo, que nos invade, sem precisar de explicação ou sequer fazer sentido. Essa necessidade de dar solidez ao que não pode recebê-la, enrijece o sentimento a ponto de descaracterizá-lo por completo. Nem tudo tem a obrigação de ter uma forma rígida, para que possamos identificá-las, em nossa pequenez, com maior facilidade. E quem não sabe deixar o sentimento tomar conta da cabeça, num ato de lucidez, nunca será capaz de saber qualquer coisa sobre sentir.
As palavras nunca estão a sete palmos. Permanecem vivas após ditas, como poucos atos concretos conseguem permanecer. Têm, em sua natureza, a capacidade de traduzir o que há por dentro e, mais ainda, a importância de nos fazer pensar ao dizê-las. Palavra é reconhecimento de si e do outro. É quando conseguimos, em fala, fazer o que não conseguimos falar em ato. É a expressão mais racional do que se tem por dentro, numa tentativa válida de expor aquilo em que se acredita.
Fazer, falar e sentir se completam numa balança de várias medidas, que se autoajusta numa preciosidade só. Sempre que quisermos fazer com que essa balança traga sempre a mesma tara, estaremos engessando nossa capacidade de perceber a nós mesmos. Deixemos que cada coisa se ajuste do seu modo, sem convicção ou coisa prática que as limite. Os atos, na condição do "fazer", são apenas um dos meios pelos quais o "falar" e o "sentir" podem vir ao plano do entendimento.
Nunca seremos capazes de captar e registrar universos a partir da soma de consequências dos atos. Sempre que excluirmos as outras formas possíveis de entendimento do mundo, limitando essa apreensão à lógica e à apreciação, estaremos ampliando nossa chance de enxergar errado. É incompleto demais ser racional, apenas, apesar de Camus acreditar que tudo pode ser resumido à ordem da inteligência. 
A beleza é essa, de não conseguir conhecer mais alguém mesmo tendo assistido tantas vezes a ela. Porque vê-la em cena, agindo, sem a capacidade de ouvi-la em palavra e percebê-la em sentimento, será sempre fazer um recorte incompleto, imperfeito, do que ela é. Não é na prática que vamos conseguir conhecer melhor os homens, esses desconhecidos.

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