terça-feira, 8 de novembro de 2011

a de versativa

Eu espero estar por perto no dia em que você decidir promover as pazes entre seus miolos, átrios e ventrículos. E que, enfim, esquecendo-se de embolar nos versos de "eu te amo, mas..." resmungados, se inunde da vontade de sentir, apenas, afastando incertezas e paranoias. O dia em que, despido de qualquer porém, você saiba dizer baixinho, ao pé do ouvido, um "eu te amo" assim, sem ponto final, sem vírgula ou reticência. Como se falasse para deixar surgir, logo depois, o desejo de repetir uma vez, e mais outra, e mais outra, aquilo que ressoa por dentro. Sussurrando, acreditar que libertou num grito, aos quatro ventos, suas palavras de amor.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Suspiro.

Afagar as vontades do corpo é desafogar as agonias da alma. Permitir que as dores se esvaiam, em jatos de choro (e gemidos), por entre as pernas.

Depois, calam-se. E dormem. Enquanto esquecem que, ao acordar, não haverá outros lençóis, além dos seus, para arrumar sobre a cama.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

só pra dizer o que eu sei

sem querer dizer muita coisa ou sentir muita coisa ou saber muita coisa, só quero dizer que, apesar de sentir muito e de saber que sinto muito, e de sentir que sei muito o que digo pouco, pouco importa se eu cheguei a dizer muito ou saber muito o que eu sentia tanto. só sei que, se eu pudesse, dizia o tempo todo que o que eu sinto o tempo todo e o que eu sei o tempo todo é que, se desse, eu ficava era calada, de boca e de pensamento, só pra sobrar espaço pra sentir muito, o tempo todo.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sobre sementes

Plantar é, num ato puro de dedicação, respeitar o tempo. É lançar ao solo, nem sempre tão fértil, a semente frágil, sensível, mas rígida, e misteriosa a ponto de se permitir secar com os segredos todos guardados se não encontrar razão para vir à luz. Para vê-la brotar, é preciso cuidado e, acima de tudo, paciência; a demora é tanta que se pode chegar a crer que haverá de ter sido tudo em vão. Ela continua lá, repousando sob a terra, mesmo regada à água fresca, luzes do dia e de fim de tarde e doses, daquele que dá sem receber em troca, de esperança. E segue aparentemente seca, impenetrável, calando envolta de húmus. É que são desconfiadas, as sementes. Precisam que se prove o valor de se entregar à metamorfose, de morrer para nascer outra. Necessitam das demonstrações de carinho, de cuidado, de que invistam nelas mesmo sem saber se virão, um dia, a se tornar alguma coisa. De repente, num despretensioso despertar de talinho verde, desabrocha. Dá, como que sorrindo, a prova de ter estado viva durante todo o tempo. E, ainda sem raiz, se arrisca miúda sobre o solo. Precisa de toda proteção contra as chuvas fortes, os pássaros ou as formigas. Mas sob a atenção de duas mãos, toma corpo, e se vê cada vez mais ereta, confiante, desvelando talos, folhas e ramagens floridas, por puro prazer. Aos poucos, ganha força e nem precisa mais de tantos cuidados. Simplesmente, cresce, e se fazendo notar grandiosa, abriga, em sua sombra, nada menos que a calmaria.

 

Mas quanta incompreensão dos impacientes. As sementes, na verdade, se deixam tocar. Esperam, por natureza, o encontro com a terra, anseiam por sentir a casca amolecer em contato com a água. Absorvem todo zelo, amor, toda incondicionalidade, e, daí, se envolvem num desejo puro de transformação, num entregar-se desmedido e bravio. Discretas, reúnem tudo quanto podem e se desenvolvem depressa, esperando poder vencer a terra e se mostrarem lindas, crescidas, antes de o jardineiro ir embora. E, de surpresa, num dia qualquer, se exibem verdes e, ainda que pequenas e vulneráveis, representam tudo o que se pode chamar de amor.


sexta-feira, 30 de setembro de 2011

(Des)apego.

É que acordei com você deitado ao meu lado, sorrindo com meias-luas nos olhos. Assim, de surpresa, porque, até onde eu lembrava, tinha te colocado para fora antes de me deitar. Mas você insiste em se manter por perto, quase sempre à noite, quando já me cansei do dia mal vivido.

Saí da cama angustiada e vesti de qualquer jeito a camisola branco-transparente, já gasta, que repousava sobre as costas da poltrona. Arrependida por ter te arranjando espaço, mais uma vez, na cama que um dia foi nossa, grito. Me irrito, reclamo da sua volta insistente, abusada, brigo para te colocar para fora. Abro a porta da rua e te despacho, lembrando de me preocupar com as trancas, que já troquei.

A casa é grande, atolada de mobília, e tinha as paredes todas coloridas, mas decidi, há um tempo, pintar tudo de branco. As janelas enormes, que vão de um canto a outro da sala comprida, eram o que mais gostávamos, e, observando as metamorfoses do céu, passávamos a maior parte do tempo deitados na rede. Acabei comprando cortinas pesadas, de parede inteira, para ver se, escondendo o jardim lá fora, restava menos do seu gosto aqui dentro.

Desvencilho-me das portas e, andando até a cozinha, dou um nó nos cabelos ainda longos. Lavo o rosto na pia, afogando o pescoço, as bochechas. Encho três dedos d’água num copo de vidro e bebo um gole, deixando-a escorrer fria na garganta. Derramo todo o resto no ralo, enquanto me deixo esparramar pelo chão de cerâmica, sentindo o refluxo da água nos olhos.

Por mais uma manhã, me vejo repetir a exaustiva rotina de juntar suas coisas, espalhadas por todo canto, antes de começar o dia. Não tinha reparado na bagunça quando saí do quarto logo cedo, mas, agora, já está tudo fora do lugar. Seus livros e discos pelo chão, suas roupas e cuecas sujas e toalhas molhadas jogadas na cama. Quanto mais eu arrumo, limpo, mais você teima em tomar conta de tudo.

E, como que de propósito, é você que me faz companhia quando estou só, que me coloca na cama e alisa meus cabelos até o sono chegar. Que protege meus sonhos e me desperta cedinho, num susto, com um beijo úmido e sem estalo nos lábios. Bagunça minha casa inteira de madrugada, para que ela esteja, ao despertar, um pouco menos ranzinza. E, por mais que eu insista, brigue, esperneie, é quem continua a voltar, sorrindo, de surpresa, como quem diz: "Meu bem, eu estive aqui o tempo todo".

E aí, dói. Ao me perceber aqui, sentada num colchão amolecido, tentando encaixotar teus sapatos. Logo você, meu bem, que me mantinha enrolada em teus braços mesmo quando já estava tarde para levantar. Logo você, que só de estar por perto me fazia bem, tendo que ser varrido daqui. Dói ter que te pedir que se vá, que ande logo e que, se puder, não me lance outro olhar de despedida. Não entendo por que não se vai de vez, desperdiça a chance de escapar. Logo você, que tanto se queixou das nossas vidraças embaçadas; e do meu falar demais sobre nada ou sobre nós.

Continuo quebrando porta-retratos, queimando cartas, arrancando bilhetes das paredes. Sem me dar conta, provoco uma autossabotagem contra a qual o corpo reage com autoajuda, se negando a abrir mão do que afaga. Cada vez que tento te apagar, vou apagando a mim também. E então, nesse processo incessante de te fazer ir embora, vou me perdendo pelos cômodos vazios.

Levanto da cama, deixando os sapatos, os perfumes e os versos de lado. Recolho os cacos do chão e espalho os meus livros e discos e tubos de tinta pelo quarto inteiro, sem me preocupar com pincéis, lençóis ou cores descombinadas. Dispo-me da roupa, das tampas, dos elásticos de cabelo e das bijuterias presas nas orelhas. Com os pés, tinjo despretensiosamente o assoalho, que vai se manchando rosa, azul, amarelo, e escalando o guarda-roupa, desço umas caixas antigas.

Separo umas receitas guardadas, me enfio na cozinha, melada mesmo de tinta, e preparo o almoço. Lavo a louça mais bonita, as taças de cristal e desarrolho um vinho antigo, presente de aniversário de um ano qualquer. Como sentada no sofá da sala e, com a tinta já seca no corpo, me engraço pela sala apática.

Cansada de noites mal dormidas, arranjo um cantinho confortável na cama. E sem me preocupar com invasões, fugas ou assaltos, durmo com a porta encostada. Então, comigo, assim, disposta a dormir até mais tarde, você se levanta da cama com todo o cuidado para não me acordar. Arruma todas as suas coisas e, em vez de me beijar os lábios, deixa um bilhete a repousar no travesseiro: “Faz um dia lindo lá fora, minha flor”.
 



segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Entre as pipas, o concreto

Do alto do Viaduto da Ferradura, em Porta Larga, via-se a paisagem cinza ser entrecortada por cores. Sobre as avenidas engarrafadas, deslizavam duas pipas, tranquilas, no céu de fim de tarde recifense. Amarela e vermelha, se cruzavam, subiam, desciam, competindo por um cantinho de destaque lá no alto. No chão, trabalhadores se encarregavam de substituir os canteiros verdes que dividem as vias por asfalto.

Um homem, atarefado, carregava um grande isopor nas costas. Caminhando por entre os carros, vendia bebidas aos motoristas. Fazia calor e o mormaço, agravado pela quentura do sol que tardava em se pôr, queimava. Nos intervalos do serviço, conversava, mesmo que de longe, com seus dois meninos. Um mais alto, cabeludo, outro mais novo, sem camisa. Brincavam descalços sob o viaduto, compenetrados, sem tirar os olhos do céu.

Os pontos coloridos que tremeluziam lá em cima sorriam do tédio de concreto. Corriam e, ao nos observar empacados, posavam. Livres, deixavam as rabiolas riscarem as zombarias que quisessem no fundo azul. Se esbaldavam no céu que não tinham que dividir nem com as nuvens, nem com os telhados, ou com os fios de eletricidade. E, por um momento, pareciam rir de saudade matada. Aproveitavam com graça o espaço que tinham como se soubessem que, há muito, já não lhes pertencia mais.

Incômoda a sensação de estranhar a brincadeira de rua. Parece que se foi, de vez, o tempo em que assistir às crianças compondo a paisagem era presenciar a inocência. Que a diversão dos mais novos surgia nas calçadas, que a felicidade se encontrava na esquina. Construir os próprios brinquedos, sujar os pés, as mãos e as roupas e se entristecer pelo sereno que insistia em chegar de surpresa era o que inspirava as tardes, assim, de primavera.

Foi-se o tempo em que a rua era o lugar das crianças. De todas elas. E que observá-las ao ar livre, desocupadas e encardidas, não nos fazia sentir medo, pena ou achar que não há oportunidade para que elas possam ser melhores do que já são. Que era permitido (e incentivado) que corressem o quanto quisessem, jogassem bola, cobrissem os corpos de areia e de lama. A imaginação corria solta e, para a diversão, ainda havia tempo.

O futuro, que nessa fase da vida significa apenas continuar a brincadeira no dia seguinte, se materializa nas grades de horário. Rígidas, calculadas e, quem diria!, realizáveis. A ingenuidade dos pequenos vai se perdendo sufocada. Vivem enclausuradas e, entre a falta de quintais e a necessidade de se tornar gente, tornam-se adultas. Antes da hora. E salvas do contato com a rua lá fora. O espaço livre para a imaginação se esvai cedinho e, antes do pôr-do-sol, já se acabaram, de cansaço, os dias.

No dia 14 de setembro deste ano, quarta-feira, um Vinícius de oito anos empinava pipa. Morava no bairro de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, e, por volta do meio-dia, saiu pra brincar. Sozinho mesmo, fazia subir seu pedaço enfeitado de papel. Mas, com a linha na mão, controlava o caminho que o papagaio percorria lá no alto. Desenhava o que sonhava em forma de dança no céu, mas permitindo que o vento, companheiro, sonhasse por ele também.

Só que as pipas caem. E, nem sempre, são fáceis de recuperar. A do menino decidiu invadir, libertina e cheia de vontade que era, um terreno perto dali. E lá foi o garoto escalar as paredes, sem hesitar, para conquistar o brinquedo de volta. Temendo assaltos à propriedade, seu dono, assim pensava, a estava protegendo com cercas elétricas sobre os muros.

E meninos caem. Se machucam, ralam o joelho, levam ponto no queixo. Como as pipas, se empinam corajosos, se deixam voar e, por simplesmente viver, são livres. Vinícius, quando chegasse o entardecer, não voltaria chateado com o danado sereno. Ao dono da casa, nada restava senão a necessidade de se eximir de culpa. Lançou, como quem lava as mãos, o corpo já inerte no terreno que cabe ao outro. E lá se vão nossas crianças, esbarrando nas barreiras impostas à imaginação, correndo atrás de pipas que insistem em não decolar.

sábado, 16 de julho de 2011

Virtuose, né.

Quem sabe se admitíssemos nossa animalidade como natural, não seríamos mais felizes. Nos cobraríamos (e sofreríamos) menos, abstendo-nos de toda a autorrepressão que nos aleija.

Dizem que o que nos diferencia dos outros animais (e que, ora!, nos faz mais evoluídos) é a capacidade de controlar os instintos. Agir calculadamente, pensar por meio de símbolos, com a razão se sobrepondo à emoção, com as obrigações à frente dos prazeres. Na verdade, com nosso labor servindo de caminho para, por merecimento, alcançá-los. Os prazeres são as nossas recompensas – nunca gratuitas e sempre caras demais para se ter tanto quanto é de desejo.

E, caramba!, como a vida social é facilitada deste jeito. A autoregulação naturalizada é inerente aos seres bem treinados, educadíssimos, e, graças a isso, também mais evoluídos que os homens com trejeitos animalescos. O autocontrole deve se apresentar, categoricamente, em tudo o que se faz na vida. Nos horários para dormir, para acordar, para comer. Nos modos de se vestir, com sapatos e trajes desconfortáveis, de sentar, com as pernas a esmagar e esconder o sexo, de transar, com todos os passos e gestos ensaiados para demonstrar boa performance.

Aqueles indivíduos, se é que se pode nomeá-los assim, que se permitem agir por impulso estão tão inadequados às normas de sociabilidade que é mais seguro não tê-los por perto. E se nem eles próprios percebem a necessidade de se domarem, é porque ou já estão loucos ou são pobres demais de educação.

A cultura, já diziam, é a forma de expressar esta razão, é a manifestação da habilidade de ser homem. A natureza, como o que é bruto, de nascença, é o avesso da cultura, é o que precisa ser anulado para que a outra possa existir. Assim mesmo, em dicotomia.

E eu, que comecei esse texto para tratar de outra coisa. Para falar de arte, de poesia, e da distância que elas exigem dos seres destreinados. Arte não é para qualquer um, meu caro. Nem para ver, muito menos para fazer. Poesia não se escreve com saliva, escarro, sangue, lágrimas ou qualquer resto de excreta. Todo o preciosismo que a arte requer está distante demais dos impulsos de vomitar versos. De assaltos de inspiração. Algum gênio desses disse que nada é tão simples, que é preciso 99% de transpiração para se criar alguma coisa e, voilà!, deixe a arte para quem sabe o que fazer com ela.

O mestre Carlos Drummond de Andrade já alertava: “Não faças poesia com o corpo (...) o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. Aprenda a lapidar, usar metáforas, perífrases, circunlóquios. Tenha tato para escolher as melhores palavras (isto é, dentre as que existem, não dentre as que você conhece) para estar de acordo com os critérios de legitimação. Mexa, remexa, deixe a estrofe na gaveta e contorça os verbos mais um pouco. Após muito suor (que nunca haverá de pingar no papel), talvez se tenha um poema. Isto é, se os entendidos, enfim, o aceitarem como tal.

E eu nem falei de pureza.

terça-feira, 29 de março de 2011

(a-)

.
às vezes tem enes demais quando tudo que quero são vírgulas pontos e enes de menos

.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

as ilhas são cercadas por água de chuva

O dia não amanheceu. O sol, apesar de transitar, sem pressa, sobre sua rota de costume, não teve força o bastante para dispersar a neblina. Sem nuances quaisquer de cor, ou sem luz que bastasse ao despertar, a madrugada se fez estender. 

despertadores não tiveram razão para soar.
preguiçosas, cortinas continuaram a cobrir as janelas.

Pálido, sombrio, - talvez até fúnebre -, o céu, que não se via, permaneceu encoberto. Nuvens amorfas, sem brilho e sem mistério, pairavam imóveis e encardidas sobre a cidade. Os lampejos fortes mas fugazes de luz amedrontavam antes mesmo de se saber que precediam estrondos.

As pessoas, cobertas pelo frio, não insinuavam pele ou curva sequer. Nem dedos do pé. Ou dentes. Ou orelhas. Mantinham os lábios e os passos cerrados e o concreto, por suas imperfeições, acomodava poças das quais se fazia acrobacias para desviar. A água, ao cair sob a forma de tempestade, castiga como farpas impiedosas que se lançam kamikazes ao chão. Ao invés de límpida, se acumula turva, lamacenta; deixa o asfalto ainda mais escuro que o normal.

calotas hasteadas repousam sobre as cabeças escondendo frontes; 
permitem que a chuva caia apenas em redor do corpo
ao escorrer seguramente sobre a superfície impermeável de poliéster.



o carro prata, cujos vidros fumê não permitiam a entrada de respingos, ao passo que não deixavam o ar condicionado gelado escapar, não cogitou ter a velocidade intimidada pela pista escorregadia. encharcou num banho fétido os que estavam prostrados na calçada

Tenho aversão à subjetividade.

Poesia é sentimento, expressão de uma emoção. 
Carlos Drummond de Andrade.


“Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçã, palavras concretas, são bem mais fortes poeticamente do que tristeza, melancolia ou saudade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade – mas não diretamente. O poeta não tem que dizer 'eu estou triste'. O que ele tem é de encontrar uma imagem que dê ideia de tristeza ou do estado de espírito – seja ele qual for – por meio de palavras concretas – e não simplesmente se confessando, na base do 'eu estou triste'. Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de 'emoção'. O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções. É criar emoções, é criar um objeto – se é um poeta, um poema; se é pintor, um quadro – que provoque emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra a emoção é exatamente nesse sentido: o de usar a minha emoção para fazer, com ela, uma obra, descrevê-la primariamente e construir, com ela, um poema”.

João Cabral de Melo Neto.


Trecho da entrevista concedida ao repórter Geneton Moraes Neto no apartamento em que o poeta morava, na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro. O depoimento foi publicado no livro "Dossiê Drummond", escrito por Geneton, em contraposição à visão de Carlos Drummond de Andrade sobre o fazer poético.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Só.

"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. 

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre".


Vinícius de Moraes.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

De maré.

– Quem mandou se casar com uma mulher que gosta de mandar? – questionou ela, com ar forçado de superioridade. Encenava, gostava do poder que conferia a si mesma, da cara-de-pau em se dizer dona de alguém. Dona dele, especialmente, que insistia em repetir que "o amor é, antes de tudo, exercício de liberdade". Adorava se fazer ditadora, poderosa, só pelo prazer da implicância. E nem se dera conta do deslize proferido.

Ela se sabia incapaz de cuidar de si mesma – não admitiria jamais. No fundo, almejava a independência (e se vestia com ela) para poder escolher depender de alguém. Menina.

Ele, desconcertado, pego de surpresa, levou meio-riso à boca. Achou engraçado o tom, os trejeitos, e nem ligou para a intenção cabresta da pergunta. Triunfou ao perceber que não deixaria a gafe passar em branco, logo quando esta escapuliu. Viviam assim, na brincadeira, como se disputando alguma coisa, tentando ver quem levava a melhor.

Ele tinha por costume ficar olhando para ela,  imaginando o que  suas palavras não diziam.  Ela, que nunca falava sem pensar, pelo visto, tinha naturalizado a fantasia.

Curvou a sobrancelha, franziu a testa e, com pose de quem não entendeu, perguntou de volta, para encabulá-la:

– E eu já me casei, foi? – sorria, agora, com os dentes todos (e são muitos). Da ingenuidade.  De saber que a veria corar, desarmada.

A namorada, por um segundo, ficou sem entender a réplica. Mas logo riu, envergonhada, da sentença espontânea, traduzida em vacilo. Traída pelo reflexo, ria do que compartilhara, da contradição, da exposição.

Isso lá é coisa que se diga.
Estremece a autoridade.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Sem manto e sem epitáfio.

Só falta deixar a terra correr por entre os dedos. Umedecida de lágrimas, talvez, mas nada mais. Resta assistir ao remate de camarote, a sete palmos de distância, com o semblante marcado de agonia por não entender o final desgraçado. Não há palavra sequer cravada no mármore.