era quinta-feira.
o coração amargava dois mil e trezentos quilômetros e dez dias de distância. e remoía, magoado, a gritaria digitada do dia anterior.
- eu preciso ir no banheiro, pelo amor de deus - implorou um amigo no banco de trás.
dois segundos antes, berrava a canção que tocava no rádio.
na esquina, o carro parado na calçada, uma banca de flores.
desci apressada, com a carteira na mão, para escolher um raminho no meiotempo de uma mijada.
a noite se apressava em chegar e o homem, em fim de turno, recolhia as ramagens.
logo na frente, restavam flores do campo opacas, já cansadas do sol.
- o senhor não tem mais nenhuma?
- tenho - e se virou em menção de abrir o baú.
antes que me mostrasse qualquer coisa, atropelei:
- tem girassol?
- tenho - e pegou um arranjo já montado, bem brega, com quatro flores.
- quanto é?
- quinze.
tentei barganhar, mas ele resistiu.
explicou que comprava o arranjo por doze e que, por isso, aquele era o preço mesmo.
fiquei meio emburrada com a desculpa, e eu nem queria girassol. só queria acabar com aquilo logo e tentar acordar, na sexta-feira, com um tanto mais de cor.
- e o que é que o senhor tem de mais baratinho, hein?
conseguiu abrir o baú, deixando escapar uma brisa doce, e respondeu:
- tenho esses crisântemos - e havia muitos, brancos e amarelos.
- e quanto é?
- um real o raminho.
- me dê dois. dos mais bonitos, viu?
pegou as que estavam na frente, me perguntou de que tamanho eu queria o caule e as embrulhou num pedaço de plástico.
voltei pro carro e o amigo aliviado já embolava outras melodias.
reclamei, como de costume.
- absurdo o preço dos girassóis.
e segui calada o resto do caminho.
tive dificuldade, como de costume, para encontrar as chaves na bolsa.
a casa estava escura e sunny estava na porta, à espera nervosa de que alguém chegasse para fazer companhia. não dei atenção.
como de costume, joguei a bolsa na cama e tirei os sapatos. quis dormir logo.
fechei os olhos e, com tudo rodando, lembrei das flores.
levantei tonta e, na cozinha, enfiei os crisântemos numa tulipa.
coloquei água da torneira no copo de cerveja e larguei as flores repousando na cabeceira da cama.
sabia que, no dia seguinte, teria que jogá-las fora.
então pouco importava.
já se passaram dez dias.
e os crisântemos não desbotaram o amarelo.
continuam enfeitando, com a robustez delicada de suas coisinhas miúdas, as fotos empoeiradas dos porta-retratos.
como se já não fossem mortas, tiram o que precisam de sua própria água, nutrida com seu próprio gosto.
é que não há intempérie, ou tempo passado, que murche o que há vivo por dentro.
o que há de ser perene sobrevive, em insolente teimosia, às pálpebras de neblina.
já se passaram dez dias.
e não vi cair uma pétala sequer de flor.