domingo, 20 de fevereiro de 2011

as ilhas são cercadas por água de chuva

O dia não amanheceu. O sol, apesar de transitar, sem pressa, sobre sua rota de costume, não teve força o bastante para dispersar a neblina. Sem nuances quaisquer de cor, ou sem luz que bastasse ao despertar, a madrugada se fez estender. 

despertadores não tiveram razão para soar.
preguiçosas, cortinas continuaram a cobrir as janelas.

Pálido, sombrio, - talvez até fúnebre -, o céu, que não se via, permaneceu encoberto. Nuvens amorfas, sem brilho e sem mistério, pairavam imóveis e encardidas sobre a cidade. Os lampejos fortes mas fugazes de luz amedrontavam antes mesmo de se saber que precediam estrondos.

As pessoas, cobertas pelo frio, não insinuavam pele ou curva sequer. Nem dedos do pé. Ou dentes. Ou orelhas. Mantinham os lábios e os passos cerrados e o concreto, por suas imperfeições, acomodava poças das quais se fazia acrobacias para desviar. A água, ao cair sob a forma de tempestade, castiga como farpas impiedosas que se lançam kamikazes ao chão. Ao invés de límpida, se acumula turva, lamacenta; deixa o asfalto ainda mais escuro que o normal.

calotas hasteadas repousam sobre as cabeças escondendo frontes; 
permitem que a chuva caia apenas em redor do corpo
ao escorrer seguramente sobre a superfície impermeável de poliéster.



o carro prata, cujos vidros fumê não permitiam a entrada de respingos, ao passo que não deixavam o ar condicionado gelado escapar, não cogitou ter a velocidade intimidada pela pista escorregadia. encharcou num banho fétido os que estavam prostrados na calçada

Tenho aversão à subjetividade.

Poesia é sentimento, expressão de uma emoção. 
Carlos Drummond de Andrade.


“Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçã, palavras concretas, são bem mais fortes poeticamente do que tristeza, melancolia ou saudade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade – mas não diretamente. O poeta não tem que dizer 'eu estou triste'. O que ele tem é de encontrar uma imagem que dê ideia de tristeza ou do estado de espírito – seja ele qual for – por meio de palavras concretas – e não simplesmente se confessando, na base do 'eu estou triste'. Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de 'emoção'. O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções. É criar emoções, é criar um objeto – se é um poeta, um poema; se é pintor, um quadro – que provoque emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra a emoção é exatamente nesse sentido: o de usar a minha emoção para fazer, com ela, uma obra, descrevê-la primariamente e construir, com ela, um poema”.

João Cabral de Melo Neto.


Trecho da entrevista concedida ao repórter Geneton Moraes Neto no apartamento em que o poeta morava, na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro. O depoimento foi publicado no livro "Dossiê Drummond", escrito por Geneton, em contraposição à visão de Carlos Drummond de Andrade sobre o fazer poético.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Só.

"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. 

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre".


Vinícius de Moraes.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

De maré.

– Quem mandou se casar com uma mulher que gosta de mandar? – questionou ela, com ar forçado de superioridade. Encenava, gostava do poder que conferia a si mesma, da cara-de-pau em se dizer dona de alguém. Dona dele, especialmente, que insistia em repetir que "o amor é, antes de tudo, exercício de liberdade". Adorava se fazer ditadora, poderosa, só pelo prazer da implicância. E nem se dera conta do deslize proferido.

Ela se sabia incapaz de cuidar de si mesma – não admitiria jamais. No fundo, almejava a independência (e se vestia com ela) para poder escolher depender de alguém. Menina.

Ele, desconcertado, pego de surpresa, levou meio-riso à boca. Achou engraçado o tom, os trejeitos, e nem ligou para a intenção cabresta da pergunta. Triunfou ao perceber que não deixaria a gafe passar em branco, logo quando esta escapuliu. Viviam assim, na brincadeira, como se disputando alguma coisa, tentando ver quem levava a melhor.

Ele tinha por costume ficar olhando para ela,  imaginando o que  suas palavras não diziam.  Ela, que nunca falava sem pensar, pelo visto, tinha naturalizado a fantasia.

Curvou a sobrancelha, franziu a testa e, com pose de quem não entendeu, perguntou de volta, para encabulá-la:

– E eu já me casei, foi? – sorria, agora, com os dentes todos (e são muitos). Da ingenuidade.  De saber que a veria corar, desarmada.

A namorada, por um segundo, ficou sem entender a réplica. Mas logo riu, envergonhada, da sentença espontânea, traduzida em vacilo. Traída pelo reflexo, ria do que compartilhara, da contradição, da exposição.

Isso lá é coisa que se diga.
Estremece a autoridade.