Quem sabe se admitíssemos nossa animalidade como natural, não seríamos mais felizes. Nos cobraríamos (e sofreríamos) menos, abstendo-nos de toda a autorrepressão que nos aleija.
Dizem que o que nos diferencia dos outros animais (e que, ora!, nos faz mais evoluídos) é a capacidade de controlar os instintos. Agir calculadamente, pensar por meio de símbolos, com a razão se sobrepondo à emoção, com as obrigações à frente dos prazeres. Na verdade, com nosso labor servindo de caminho para, por merecimento, alcançá-los. Os prazeres são as nossas recompensas – nunca gratuitas e sempre caras demais para se ter tanto quanto é de desejo.
E, caramba!, como a vida social é facilitada deste jeito. A autoregulação naturalizada é inerente aos seres bem treinados, educadíssimos, e, graças a isso, também mais evoluídos que os homens com trejeitos animalescos. O autocontrole deve se apresentar, categoricamente, em tudo o que se faz na vida. Nos horários para dormir, para acordar, para comer. Nos modos de se vestir, com sapatos e trajes desconfortáveis, de sentar, com as pernas a esmagar e esconder o sexo, de transar, com todos os passos e gestos ensaiados para demonstrar boa performance.
Aqueles indivíduos, se é que se pode nomeá-los assim, que se permitem agir por impulso estão tão inadequados às normas de sociabilidade que é mais seguro não tê-los por perto. E se nem eles próprios percebem a necessidade de se domarem, é porque ou já estão loucos ou são pobres demais de educação.
A cultura, já diziam, é a forma de expressar esta razão, é a manifestação da habilidade de ser homem. A natureza, como o que é bruto, de nascença, é o avesso da cultura, é o que precisa ser anulado para que a outra possa existir. Assim mesmo, em dicotomia.
E eu, que comecei esse texto para tratar de outra coisa. Para falar de arte, de poesia, e da distância que elas exigem dos seres destreinados. Arte não é para qualquer um, meu caro. Nem para ver, muito menos para fazer. Poesia não se escreve com saliva, escarro, sangue, lágrimas ou qualquer resto de excreta. Todo o preciosismo que a arte requer está distante demais dos impulsos de vomitar versos. De assaltos de inspiração. Algum gênio desses disse que nada é tão simples, que é preciso 99% de transpiração para se criar alguma coisa e, voilà!, deixe a arte para quem sabe o que fazer com ela.
O mestre Carlos Drummond de Andrade já alertava: “Não faças poesia com o corpo (...) o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. Aprenda a lapidar, usar metáforas, perífrases, circunlóquios. Tenha tato para escolher as melhores palavras (isto é, dentre as que existem, não dentre as que você conhece) para estar de acordo com os critérios de legitimação. Mexa, remexa, deixe a estrofe na gaveta e contorça os verbos mais um pouco. Após muito suor (que nunca haverá de pingar no papel), talvez se tenha um poema. Isto é, se os entendidos, enfim, o aceitarem como tal.
E eu nem falei de pureza.
E eu nem falei de pureza.
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