Do alto do Viaduto da Ferradura, em Porta Larga, via-se a paisagem cinza ser entrecortada por cores. Sobre as avenidas engarrafadas, deslizavam duas pipas, tranquilas, no céu de fim de tarde recifense. Amarela e vermelha, se cruzavam, subiam, desciam, competindo por um cantinho de destaque lá no alto. No chão, trabalhadores se encarregavam de substituir os canteiros verdes que dividem as vias por asfalto.
Um homem, atarefado, carregava um grande isopor nas costas. Caminhando por entre os carros, vendia bebidas aos motoristas. Fazia calor e o mormaço, agravado pela quentura do sol que tardava em se pôr, queimava. Nos intervalos do serviço, conversava, mesmo que de longe, com seus dois meninos. Um mais alto, cabeludo, outro mais novo, sem camisa. Brincavam descalços sob o viaduto, compenetrados, sem tirar os olhos do céu.
Os pontos coloridos que tremeluziam lá em cima sorriam do tédio de concreto. Corriam e, ao nos observar empacados, posavam. Livres, deixavam as rabiolas riscarem as zombarias que quisessem no fundo azul. Se esbaldavam no céu que não tinham que dividir nem com as nuvens, nem com os telhados, ou com os fios de eletricidade. E, por um momento, pareciam rir de saudade matada. Aproveitavam com graça o espaço que tinham como se soubessem que, há muito, já não lhes pertencia mais.
Incômoda a sensação de estranhar a brincadeira de rua. Parece que se foi, de vez, o tempo em que assistir às crianças compondo a paisagem era presenciar a inocência. Que a diversão dos mais novos surgia nas calçadas, que a felicidade se encontrava na esquina. Construir os próprios brinquedos, sujar os pés, as mãos e as roupas e se entristecer pelo sereno que insistia em chegar de surpresa era o que inspirava as tardes, assim, de primavera.
Foi-se o tempo em que a rua era o lugar das crianças. De todas elas. E que observá-las ao ar livre, desocupadas e encardidas, não nos fazia sentir medo, pena ou achar que não há oportunidade para que elas possam ser melhores do que já são. Que era permitido (e incentivado) que corressem o quanto quisessem, jogassem bola, cobrissem os corpos de areia e de lama. A imaginação corria solta e, para a diversão, ainda havia tempo.
O futuro, que nessa fase da vida significa apenas continuar a brincadeira no dia seguinte, se materializa nas grades de horário. Rígidas, calculadas e, quem diria!, realizáveis. A ingenuidade dos pequenos vai se perdendo sufocada. Vivem enclausuradas e, entre a falta de quintais e a necessidade de se tornar gente, tornam-se adultas. Antes da hora. E salvas do contato com a rua lá fora. O espaço livre para a imaginação se esvai cedinho e, antes do pôr-do-sol, já se acabaram, de cansaço, os dias.
No dia 14 de setembro deste ano, quarta-feira, um Vinícius de oito anos empinava pipa. Morava no bairro de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, e, por volta do meio-dia, saiu pra brincar. Sozinho mesmo, fazia subir seu pedaço enfeitado de papel. Mas, com a linha na mão, controlava o caminho que o papagaio percorria lá no alto. Desenhava o que sonhava em forma de dança no céu, mas permitindo que o vento, companheiro, sonhasse por ele também.
Só que as pipas caem. E, nem sempre, são fáceis de recuperar. A do menino decidiu invadir, libertina e cheia de vontade que era, um terreno perto dali. E lá foi o garoto escalar as paredes, sem hesitar, para conquistar o brinquedo de volta. Temendo assaltos à propriedade, seu dono, assim pensava, a estava protegendo com cercas elétricas sobre os muros.
E meninos caem. Se machucam, ralam o joelho, levam ponto no queixo. Como as pipas, se empinam corajosos, se deixam voar e, por simplesmente viver, são livres. Vinícius, quando chegasse o entardecer, não voltaria chateado com o danado sereno. Ao dono da casa, nada restava senão a necessidade de se eximir de culpa. Lançou, como quem lava as mãos, o corpo já inerte no terreno que cabe ao outro. E lá se vão nossas crianças, esbarrando nas barreiras impostas à imaginação, correndo atrás de pipas que insistem em não decolar.
Um homem, atarefado, carregava um grande isopor nas costas. Caminhando por entre os carros, vendia bebidas aos motoristas. Fazia calor e o mormaço, agravado pela quentura do sol que tardava em se pôr, queimava. Nos intervalos do serviço, conversava, mesmo que de longe, com seus dois meninos. Um mais alto, cabeludo, outro mais novo, sem camisa. Brincavam descalços sob o viaduto, compenetrados, sem tirar os olhos do céu.
Os pontos coloridos que tremeluziam lá em cima sorriam do tédio de concreto. Corriam e, ao nos observar empacados, posavam. Livres, deixavam as rabiolas riscarem as zombarias que quisessem no fundo azul. Se esbaldavam no céu que não tinham que dividir nem com as nuvens, nem com os telhados, ou com os fios de eletricidade. E, por um momento, pareciam rir de saudade matada. Aproveitavam com graça o espaço que tinham como se soubessem que, há muito, já não lhes pertencia mais.
Incômoda a sensação de estranhar a brincadeira de rua. Parece que se foi, de vez, o tempo em que assistir às crianças compondo a paisagem era presenciar a inocência. Que a diversão dos mais novos surgia nas calçadas, que a felicidade se encontrava na esquina. Construir os próprios brinquedos, sujar os pés, as mãos e as roupas e se entristecer pelo sereno que insistia em chegar de surpresa era o que inspirava as tardes, assim, de primavera.
Foi-se o tempo em que a rua era o lugar das crianças. De todas elas. E que observá-las ao ar livre, desocupadas e encardidas, não nos fazia sentir medo, pena ou achar que não há oportunidade para que elas possam ser melhores do que já são. Que era permitido (e incentivado) que corressem o quanto quisessem, jogassem bola, cobrissem os corpos de areia e de lama. A imaginação corria solta e, para a diversão, ainda havia tempo.
O futuro, que nessa fase da vida significa apenas continuar a brincadeira no dia seguinte, se materializa nas grades de horário. Rígidas, calculadas e, quem diria!, realizáveis. A ingenuidade dos pequenos vai se perdendo sufocada. Vivem enclausuradas e, entre a falta de quintais e a necessidade de se tornar gente, tornam-se adultas. Antes da hora. E salvas do contato com a rua lá fora. O espaço livre para a imaginação se esvai cedinho e, antes do pôr-do-sol, já se acabaram, de cansaço, os dias.
No dia 14 de setembro deste ano, quarta-feira, um Vinícius de oito anos empinava pipa. Morava no bairro de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, e, por volta do meio-dia, saiu pra brincar. Sozinho mesmo, fazia subir seu pedaço enfeitado de papel. Mas, com a linha na mão, controlava o caminho que o papagaio percorria lá no alto. Desenhava o que sonhava em forma de dança no céu, mas permitindo que o vento, companheiro, sonhasse por ele também.
Só que as pipas caem. E, nem sempre, são fáceis de recuperar. A do menino decidiu invadir, libertina e cheia de vontade que era, um terreno perto dali. E lá foi o garoto escalar as paredes, sem hesitar, para conquistar o brinquedo de volta. Temendo assaltos à propriedade, seu dono, assim pensava, a estava protegendo com cercas elétricas sobre os muros.
E meninos caem. Se machucam, ralam o joelho, levam ponto no queixo. Como as pipas, se empinam corajosos, se deixam voar e, por simplesmente viver, são livres. Vinícius, quando chegasse o entardecer, não voltaria chateado com o danado sereno. Ao dono da casa, nada restava senão a necessidade de se eximir de culpa. Lançou, como quem lava as mãos, o corpo já inerte no terreno que cabe ao outro. E lá se vão nossas crianças, esbarrando nas barreiras impostas à imaginação, correndo atrás de pipas que insistem em não decolar.
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