sexta-feira, 30 de setembro de 2011

(Des)apego.

É que acordei com você deitado ao meu lado, sorrindo com meias-luas nos olhos. Assim, de surpresa, porque, até onde eu lembrava, tinha te colocado para fora antes de me deitar. Mas você insiste em se manter por perto, quase sempre à noite, quando já me cansei do dia mal vivido.

Saí da cama angustiada e vesti de qualquer jeito a camisola branco-transparente, já gasta, que repousava sobre as costas da poltrona. Arrependida por ter te arranjando espaço, mais uma vez, na cama que um dia foi nossa, grito. Me irrito, reclamo da sua volta insistente, abusada, brigo para te colocar para fora. Abro a porta da rua e te despacho, lembrando de me preocupar com as trancas, que já troquei.

A casa é grande, atolada de mobília, e tinha as paredes todas coloridas, mas decidi, há um tempo, pintar tudo de branco. As janelas enormes, que vão de um canto a outro da sala comprida, eram o que mais gostávamos, e, observando as metamorfoses do céu, passávamos a maior parte do tempo deitados na rede. Acabei comprando cortinas pesadas, de parede inteira, para ver se, escondendo o jardim lá fora, restava menos do seu gosto aqui dentro.

Desvencilho-me das portas e, andando até a cozinha, dou um nó nos cabelos ainda longos. Lavo o rosto na pia, afogando o pescoço, as bochechas. Encho três dedos d’água num copo de vidro e bebo um gole, deixando-a escorrer fria na garganta. Derramo todo o resto no ralo, enquanto me deixo esparramar pelo chão de cerâmica, sentindo o refluxo da água nos olhos.

Por mais uma manhã, me vejo repetir a exaustiva rotina de juntar suas coisas, espalhadas por todo canto, antes de começar o dia. Não tinha reparado na bagunça quando saí do quarto logo cedo, mas, agora, já está tudo fora do lugar. Seus livros e discos pelo chão, suas roupas e cuecas sujas e toalhas molhadas jogadas na cama. Quanto mais eu arrumo, limpo, mais você teima em tomar conta de tudo.

E, como que de propósito, é você que me faz companhia quando estou só, que me coloca na cama e alisa meus cabelos até o sono chegar. Que protege meus sonhos e me desperta cedinho, num susto, com um beijo úmido e sem estalo nos lábios. Bagunça minha casa inteira de madrugada, para que ela esteja, ao despertar, um pouco menos ranzinza. E, por mais que eu insista, brigue, esperneie, é quem continua a voltar, sorrindo, de surpresa, como quem diz: "Meu bem, eu estive aqui o tempo todo".

E aí, dói. Ao me perceber aqui, sentada num colchão amolecido, tentando encaixotar teus sapatos. Logo você, meu bem, que me mantinha enrolada em teus braços mesmo quando já estava tarde para levantar. Logo você, que só de estar por perto me fazia bem, tendo que ser varrido daqui. Dói ter que te pedir que se vá, que ande logo e que, se puder, não me lance outro olhar de despedida. Não entendo por que não se vai de vez, desperdiça a chance de escapar. Logo você, que tanto se queixou das nossas vidraças embaçadas; e do meu falar demais sobre nada ou sobre nós.

Continuo quebrando porta-retratos, queimando cartas, arrancando bilhetes das paredes. Sem me dar conta, provoco uma autossabotagem contra a qual o corpo reage com autoajuda, se negando a abrir mão do que afaga. Cada vez que tento te apagar, vou apagando a mim também. E então, nesse processo incessante de te fazer ir embora, vou me perdendo pelos cômodos vazios.

Levanto da cama, deixando os sapatos, os perfumes e os versos de lado. Recolho os cacos do chão e espalho os meus livros e discos e tubos de tinta pelo quarto inteiro, sem me preocupar com pincéis, lençóis ou cores descombinadas. Dispo-me da roupa, das tampas, dos elásticos de cabelo e das bijuterias presas nas orelhas. Com os pés, tinjo despretensiosamente o assoalho, que vai se manchando rosa, azul, amarelo, e escalando o guarda-roupa, desço umas caixas antigas.

Separo umas receitas guardadas, me enfio na cozinha, melada mesmo de tinta, e preparo o almoço. Lavo a louça mais bonita, as taças de cristal e desarrolho um vinho antigo, presente de aniversário de um ano qualquer. Como sentada no sofá da sala e, com a tinta já seca no corpo, me engraço pela sala apática.

Cansada de noites mal dormidas, arranjo um cantinho confortável na cama. E sem me preocupar com invasões, fugas ou assaltos, durmo com a porta encostada. Então, comigo, assim, disposta a dormir até mais tarde, você se levanta da cama com todo o cuidado para não me acordar. Arruma todas as suas coisas e, em vez de me beijar os lábios, deixa um bilhete a repousar no travesseiro: “Faz um dia lindo lá fora, minha flor”.
 



segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Entre as pipas, o concreto

Do alto do Viaduto da Ferradura, em Porta Larga, via-se a paisagem cinza ser entrecortada por cores. Sobre as avenidas engarrafadas, deslizavam duas pipas, tranquilas, no céu de fim de tarde recifense. Amarela e vermelha, se cruzavam, subiam, desciam, competindo por um cantinho de destaque lá no alto. No chão, trabalhadores se encarregavam de substituir os canteiros verdes que dividem as vias por asfalto.

Um homem, atarefado, carregava um grande isopor nas costas. Caminhando por entre os carros, vendia bebidas aos motoristas. Fazia calor e o mormaço, agravado pela quentura do sol que tardava em se pôr, queimava. Nos intervalos do serviço, conversava, mesmo que de longe, com seus dois meninos. Um mais alto, cabeludo, outro mais novo, sem camisa. Brincavam descalços sob o viaduto, compenetrados, sem tirar os olhos do céu.

Os pontos coloridos que tremeluziam lá em cima sorriam do tédio de concreto. Corriam e, ao nos observar empacados, posavam. Livres, deixavam as rabiolas riscarem as zombarias que quisessem no fundo azul. Se esbaldavam no céu que não tinham que dividir nem com as nuvens, nem com os telhados, ou com os fios de eletricidade. E, por um momento, pareciam rir de saudade matada. Aproveitavam com graça o espaço que tinham como se soubessem que, há muito, já não lhes pertencia mais.

Incômoda a sensação de estranhar a brincadeira de rua. Parece que se foi, de vez, o tempo em que assistir às crianças compondo a paisagem era presenciar a inocência. Que a diversão dos mais novos surgia nas calçadas, que a felicidade se encontrava na esquina. Construir os próprios brinquedos, sujar os pés, as mãos e as roupas e se entristecer pelo sereno que insistia em chegar de surpresa era o que inspirava as tardes, assim, de primavera.

Foi-se o tempo em que a rua era o lugar das crianças. De todas elas. E que observá-las ao ar livre, desocupadas e encardidas, não nos fazia sentir medo, pena ou achar que não há oportunidade para que elas possam ser melhores do que já são. Que era permitido (e incentivado) que corressem o quanto quisessem, jogassem bola, cobrissem os corpos de areia e de lama. A imaginação corria solta e, para a diversão, ainda havia tempo.

O futuro, que nessa fase da vida significa apenas continuar a brincadeira no dia seguinte, se materializa nas grades de horário. Rígidas, calculadas e, quem diria!, realizáveis. A ingenuidade dos pequenos vai se perdendo sufocada. Vivem enclausuradas e, entre a falta de quintais e a necessidade de se tornar gente, tornam-se adultas. Antes da hora. E salvas do contato com a rua lá fora. O espaço livre para a imaginação se esvai cedinho e, antes do pôr-do-sol, já se acabaram, de cansaço, os dias.

No dia 14 de setembro deste ano, quarta-feira, um Vinícius de oito anos empinava pipa. Morava no bairro de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, e, por volta do meio-dia, saiu pra brincar. Sozinho mesmo, fazia subir seu pedaço enfeitado de papel. Mas, com a linha na mão, controlava o caminho que o papagaio percorria lá no alto. Desenhava o que sonhava em forma de dança no céu, mas permitindo que o vento, companheiro, sonhasse por ele também.

Só que as pipas caem. E, nem sempre, são fáceis de recuperar. A do menino decidiu invadir, libertina e cheia de vontade que era, um terreno perto dali. E lá foi o garoto escalar as paredes, sem hesitar, para conquistar o brinquedo de volta. Temendo assaltos à propriedade, seu dono, assim pensava, a estava protegendo com cercas elétricas sobre os muros.

E meninos caem. Se machucam, ralam o joelho, levam ponto no queixo. Como as pipas, se empinam corajosos, se deixam voar e, por simplesmente viver, são livres. Vinícius, quando chegasse o entardecer, não voltaria chateado com o danado sereno. Ao dono da casa, nada restava senão a necessidade de se eximir de culpa. Lançou, como quem lava as mãos, o corpo já inerte no terreno que cabe ao outro. E lá se vão nossas crianças, esbarrando nas barreiras impostas à imaginação, correndo atrás de pipas que insistem em não decolar.