É que acordei com você deitado ao meu lado, sorrindo com meias-luas nos olhos. Assim, de surpresa, porque, até onde eu lembrava, tinha te colocado para fora antes de me deitar. Mas você insiste em se manter por perto, quase sempre à noite, quando já me cansei do dia mal vivido.
Saí da cama angustiada e vesti de qualquer jeito a camisola branco-transparente, já gasta, que repousava sobre as costas da poltrona. Arrependida por ter te arranjando espaço, mais uma vez, na cama que um dia foi nossa, grito. Me irrito, reclamo da sua volta insistente, abusada, brigo para te colocar para fora. Abro a porta da rua e te despacho, lembrando de me preocupar com as trancas, que já troquei.
A casa é grande, atolada de mobília, e tinha as paredes todas coloridas, mas decidi, há um tempo, pintar tudo de branco. As janelas enormes, que vão de um canto a outro da sala comprida, eram o que mais gostávamos, e, observando as metamorfoses do céu, passávamos a maior parte do tempo deitados na rede. Acabei comprando cortinas pesadas, de parede inteira, para ver se, escondendo o jardim lá fora, restava menos do seu gosto aqui dentro.
Desvencilho-me das portas e, andando até a cozinha, dou um nó nos cabelos ainda longos. Lavo o rosto na pia, afogando o pescoço, as bochechas. Encho três dedos d’água num copo de vidro e bebo um gole, deixando-a escorrer fria na garganta. Derramo todo o resto no ralo, enquanto me deixo esparramar pelo chão de cerâmica, sentindo o refluxo da água nos olhos.
Por mais uma manhã, me vejo repetir a exaustiva rotina de juntar suas coisas, espalhadas por todo canto, antes de começar o dia. Não tinha reparado na bagunça quando saí do quarto logo cedo, mas, agora, já está tudo fora do lugar. Seus livros e discos pelo chão, suas roupas e cuecas sujas e toalhas molhadas jogadas na cama. Quanto mais eu arrumo, limpo, mais você teima em tomar conta de tudo.
E, como que de propósito, é você que me faz companhia quando estou só, que me coloca na cama e alisa meus cabelos até o sono chegar. Que protege meus sonhos e me desperta cedinho, num susto, com um beijo úmido e sem estalo nos lábios. Bagunça minha casa inteira de madrugada, para que ela esteja, ao despertar, um pouco menos ranzinza. E, por mais que eu insista, brigue, esperneie, é quem continua a voltar, sorrindo, de surpresa, como quem diz: "Meu bem, eu estive aqui o tempo todo".
E aí, dói. Ao me perceber aqui, sentada num colchão amolecido, tentando encaixotar teus sapatos. Logo você, meu bem, que me mantinha enrolada em teus braços mesmo quando já estava tarde para levantar. Logo você, que só de estar por perto me fazia bem, tendo que ser varrido daqui. Dói ter que te pedir que se vá, que ande logo e que, se puder, não me lance outro olhar de despedida. Não entendo por que não se vai de vez, desperdiça a chance de escapar. Logo você, que tanto se queixou das nossas vidraças embaçadas; e do meu falar demais sobre nada ou sobre nós.
Continuo quebrando porta-retratos, queimando cartas, arrancando bilhetes das paredes. Sem me dar conta, provoco uma autossabotagem contra a qual o corpo reage com autoajuda, se negando a abrir mão do que afaga. Cada vez que tento te apagar, vou apagando a mim também. E então, nesse processo incessante de te fazer ir embora, vou me perdendo pelos cômodos vazios.
Levanto da cama, deixando os sapatos, os perfumes e os versos de lado. Recolho os cacos do chão e espalho os meus livros e discos e tubos de tinta pelo quarto inteiro, sem me preocupar com pincéis, lençóis ou cores descombinadas. Dispo-me da roupa, das tampas, dos elásticos de cabelo e das bijuterias presas nas orelhas. Com os pés, tinjo despretensiosamente o assoalho, que vai se manchando rosa, azul, amarelo, e escalando o guarda-roupa, desço umas caixas antigas.
Separo umas receitas guardadas, me enfio na cozinha, melada mesmo de tinta, e preparo o almoço. Lavo a louça mais bonita, as taças de cristal e desarrolho um vinho antigo, presente de aniversário de um ano qualquer. Como sentada no sofá da sala e, com a tinta já seca no corpo, me engraço pela sala apática.
Cansada de noites mal dormidas, arranjo um cantinho confortável na cama. E sem me preocupar com invasões, fugas ou assaltos, durmo com a porta encostada. Então, comigo, assim, disposta a dormir até mais tarde, você se levanta da cama com todo o cuidado para não me acordar. Arruma todas as suas coisas e, em vez de me beijar os lábios, deixa um bilhete a repousar no travesseiro: “Faz um dia lindo lá fora, minha flor”.
Saí da cama angustiada e vesti de qualquer jeito a camisola branco-transparente, já gasta, que repousava sobre as costas da poltrona. Arrependida por ter te arranjando espaço, mais uma vez, na cama que um dia foi nossa, grito. Me irrito, reclamo da sua volta insistente, abusada, brigo para te colocar para fora. Abro a porta da rua e te despacho, lembrando de me preocupar com as trancas, que já troquei.
A casa é grande, atolada de mobília, e tinha as paredes todas coloridas, mas decidi, há um tempo, pintar tudo de branco. As janelas enormes, que vão de um canto a outro da sala comprida, eram o que mais gostávamos, e, observando as metamorfoses do céu, passávamos a maior parte do tempo deitados na rede. Acabei comprando cortinas pesadas, de parede inteira, para ver se, escondendo o jardim lá fora, restava menos do seu gosto aqui dentro.
Desvencilho-me das portas e, andando até a cozinha, dou um nó nos cabelos ainda longos. Lavo o rosto na pia, afogando o pescoço, as bochechas. Encho três dedos d’água num copo de vidro e bebo um gole, deixando-a escorrer fria na garganta. Derramo todo o resto no ralo, enquanto me deixo esparramar pelo chão de cerâmica, sentindo o refluxo da água nos olhos.
Por mais uma manhã, me vejo repetir a exaustiva rotina de juntar suas coisas, espalhadas por todo canto, antes de começar o dia. Não tinha reparado na bagunça quando saí do quarto logo cedo, mas, agora, já está tudo fora do lugar. Seus livros e discos pelo chão, suas roupas e cuecas sujas e toalhas molhadas jogadas na cama. Quanto mais eu arrumo, limpo, mais você teima em tomar conta de tudo.
E, como que de propósito, é você que me faz companhia quando estou só, que me coloca na cama e alisa meus cabelos até o sono chegar. Que protege meus sonhos e me desperta cedinho, num susto, com um beijo úmido e sem estalo nos lábios. Bagunça minha casa inteira de madrugada, para que ela esteja, ao despertar, um pouco menos ranzinza. E, por mais que eu insista, brigue, esperneie, é quem continua a voltar, sorrindo, de surpresa, como quem diz: "Meu bem, eu estive aqui o tempo todo".
E aí, dói. Ao me perceber aqui, sentada num colchão amolecido, tentando encaixotar teus sapatos. Logo você, meu bem, que me mantinha enrolada em teus braços mesmo quando já estava tarde para levantar. Logo você, que só de estar por perto me fazia bem, tendo que ser varrido daqui. Dói ter que te pedir que se vá, que ande logo e que, se puder, não me lance outro olhar de despedida. Não entendo por que não se vai de vez, desperdiça a chance de escapar. Logo você, que tanto se queixou das nossas vidraças embaçadas; e do meu falar demais sobre nada ou sobre nós.
Continuo quebrando porta-retratos, queimando cartas, arrancando bilhetes das paredes. Sem me dar conta, provoco uma autossabotagem contra a qual o corpo reage com autoajuda, se negando a abrir mão do que afaga. Cada vez que tento te apagar, vou apagando a mim também. E então, nesse processo incessante de te fazer ir embora, vou me perdendo pelos cômodos vazios.
Levanto da cama, deixando os sapatos, os perfumes e os versos de lado. Recolho os cacos do chão e espalho os meus livros e discos e tubos de tinta pelo quarto inteiro, sem me preocupar com pincéis, lençóis ou cores descombinadas. Dispo-me da roupa, das tampas, dos elásticos de cabelo e das bijuterias presas nas orelhas. Com os pés, tinjo despretensiosamente o assoalho, que vai se manchando rosa, azul, amarelo, e escalando o guarda-roupa, desço umas caixas antigas.
Separo umas receitas guardadas, me enfio na cozinha, melada mesmo de tinta, e preparo o almoço. Lavo a louça mais bonita, as taças de cristal e desarrolho um vinho antigo, presente de aniversário de um ano qualquer. Como sentada no sofá da sala e, com a tinta já seca no corpo, me engraço pela sala apática.
Cansada de noites mal dormidas, arranjo um cantinho confortável na cama. E sem me preocupar com invasões, fugas ou assaltos, durmo com a porta encostada. Então, comigo, assim, disposta a dormir até mais tarde, você se levanta da cama com todo o cuidado para não me acordar. Arruma todas as suas coisas e, em vez de me beijar os lábios, deixa um bilhete a repousar no travesseiro: “Faz um dia lindo lá fora, minha flor”.
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