terça-feira, 3 de abril de 2012

re-cita, vai.

Essa mania nasceu numa época em que ainda mal sabíamos quem éramos. Só nos sentíamos ligados, pulsantes, um ao lado do outro - com cócegas espalhadas por pernas, pescoço e barriga. Deitados na cama, passávamos madrugadas acordados, rindo, conversando sobre coisas que eu nem lembro mais o que. Embolados nos lençóis - com a meia-luz do abajur clareando de leve o quarto bagunçado -, cantávamos amores sem vergonha. Em um desses encontros de sábado, me disseste com convicção; a mão enfiada nos meus cabelos assanhados:

- Eu sei recitar poesia.

Olhei com cara de quem nem leva fé em talento de conquistador barato. Mas foste emendando um trecho no outro, rabo de estrofe em verso de introdução e, aos poucos, encenando poesias baixinho. A maioria de amor, apaixonadas. E nem para mim decoradas. Mas foi tom de voz, sotaque, ritmo lento e timbre adoçado. E aí, como quem se sente musa inspiradora, me derreti entre o teu braço e tuas costelas, que tanto me serviram de travesseiro. 

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Como sempre, te fiz esperar que eu me arrumasse. Faltava ainda tomar um banho, trocar a roupa, preparar nosso jantar e, você, abusado, mandou, com toda impaciência que te cabe:

- Me arranja um livro de poesia para ler.

Fui no quarto, busquei algumas coisas velhas na estante, e destaquei um nem tão antigo "O sentimento do mundo" do meio dos outros. Entreguei nas tuas mãos, enquanto você se deixava largar no sofá já todo amassado. Voltei tempos depois, com a toalha sacudindo os cabelos, perguntando o que você estava com vontade de comer.

- Vê este poema:

E foi lendo, um por um, página por página, recitando versos de guerra e tristeza em meio aos estalos na frigideira. E, entre cada mordida de pão com ovo, um drummond amaciava teus maxilares.

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Elegia 1938


Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

C.D.A.

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