sábado, 13 de outubro de 2012

Além do bem e do mal

Por ignorância, passei muito tempo defendendo sozinha a sabedoria que existe no sentimento. Tentando explicar a necessidade de incorporar o sentir ao pensar. Refutando toda poesia imaculada, toda filosofia pura. 

Hoje cedo, descobri Nietzsche (e é possível que descubra Foucault em breve) em Além do bem e do mal. Logo no primeiro capítulo (Preconceito dos Filósofos), me deparei com uma inquietação tão parecida com a minha, de negação de toda a busca incansável pela verdade, pela razão pura. A aceitação do erro, da ignorância e da incerteza como condição de vida. Uma valorização linda ao que é de instinto, de sentimento, de natureza, sem os quais é inconcebível a construção de pensamento possível. 

“É preciso colocar a maior parte do pensar consciente entre as funções do instinto” // “Admito também que existam puritanos fanáticos da consciência, os quais prefeririam um certo nada a um incerto qualquer coisa” // “Consideravam como maior triunfo tornarem-se donos dos sentidos, enredando seu turbilhão em pálidos, frios e cinzentos conceitos”.

Ao ler esses trechos, lembrei-me de um texto que havia escrito tempos atrás sobre sentir. E sobre como é absurda toda racionalidade livre de corpo. Toda essa filosofia que se baseia na necessidade de buscar verdades em algum lugar livre de desejo. Por que, no fim das contas, nos pergunta Nietzsche: de onde tiramos o conceito de pensar (que pressupõe que nos conhecemos tão profundamente a ponto de sabermos que tal pensar não é querer ou talvez sentir)? O que quer dizer claro? O que quer dizer esclarecido?

sábado, 8 de setembro de 2012

desafinado

o violão ali, encostado na parede.
ao relento da maresia de morar perto da praia.
um ré, outro lá e os dós desencontrados.
as cordas, enferrujadas, não descobrem mais os tons.
o timbre, arranhado, não desvela melodias.

continuamos a apertar as tarrachas; a forçar, até o limite, as fibras do nylon.
ceifamos o aço ao descascar de suas membranas.
e estouram, as cordas.
se partem, de tão esticadas e gastas.

nos falta o zelo de entoar o que, de cor, sabemos.
o cuidado (não o costume) de trocar o que desafinou; de ajustar as dissonâncias.
o afinco em preservar o instrumento,  e espanar os faniscos de poeira.

quando uma delas se rompe, lamentamos o que deveríamos ter feito.
nos invade o remorso e, atrasados, nos apressamos em corrigir o desleixo.
para voltar a tocar.
com carinho, substituímos as cordas todas, já velhas e surradas.
demora um pouco para que as novas se ajustem; que possam soar sis, mis ou sóis.
devagarinho, se aconchegam nas casas, conhecem os trastes e assumem acorde aveludado.

o violão continua; o mesmo corpo, a mesma acústica, a mesma alma sonora.
mas com as comas todas no lugar.


é que no peito dos desafinados
no fundo do peito, bate calado
é que no peito dos desafinados também bate um coração.

sábado, 25 de agosto de 2012

estalinho

A verdade é que, naquele selinho apressado, nasceu a vontade de te levar comigo pela vida inteira. De tão breve (e desesperado), foi paixão que não tinha mais jeito de guardar. Amor confessado num estalinho, que me invadiu e me cobre de risos largos até hoje. Tantos outros beijos mudos, roucos, (às vezes cansados de lágrimas), nos juntaram durante todo esse tempo. Você é minha sexta-feira, daquelas em que as tardes se estendiam moucas pelo quarto quente (poente) e era sempre cedo demais para ir embora. É o meu aconchego na hora de dormir, as canções balançadas na rede e a despretensão total de pijamas. É o meu banho de mar engraçado, casado com a mulher que gosta de mandar. O meu poder chorar por qualquer coisa e o meu poder ouvir que fico linda quando choro. Você é o ouvido e o ombro que eu tenho sempre comigo, o colo onde eu posso debruçar meus medos todos, meus anseios, minhas verdades. E eu só posso agradecer, todos os dias, pelo encontro dos nossos caminhos. Às vezes tortos, atrapalhados, mas sempre nossos. Você é minha vida, minha família, meu amor sincero, de um bem-querer desmedido. E infinito, que basta olhar pro teu rosto para eu me vestir, de novo, com o sorriso enorme do nosso primeiro beijo.

sábado, 11 de agosto de 2012

crisântemos de cabeceira

era quinta-feira.
o coração amargava dois mil e trezentos quilômetros e dez dias de distância. e remoía, magoado, a gritaria digitada do dia anterior.

- eu preciso ir no banheiro, pelo amor de deus - implorou um amigo no banco de trás.
dois segundos antes, berrava a canção que tocava no rádio.

na esquina, o carro parado na calçada, uma banca de flores.
desci apressada, com a carteira na mão, para escolher um raminho no meiotempo de uma mijada.

a noite se apressava em chegar e o homem, em fim de turno, recolhia as ramagens.
logo na frente, restavam flores do campo opacas, já cansadas do sol.

- o senhor não tem mais nenhuma?
- tenho - e se virou em menção de abrir o baú.
antes que me mostrasse qualquer coisa, atropelei:
- tem girassol?
- tenho - e pegou um arranjo já montado, bem brega, com quatro flores.
- quanto é?
- quinze.

tentei barganhar, mas ele resistiu.
explicou que comprava o arranjo por doze e que, por isso, aquele era o preço mesmo.
fiquei meio emburrada com a desculpa, e eu nem queria girassol. só queria acabar com aquilo logo e tentar acordar, na sexta-feira, com um tanto mais de cor.

- e o que é que o senhor tem de mais baratinho, hein?
conseguiu abrir o baú, deixando escapar uma brisa doce, e respondeu:
- tenho esses crisântemos - e havia muitos, brancos e amarelos.
- e quanto é?
- um real o raminho.
- me dê dois. dos mais bonitos, viu?

pegou as que estavam na frente, me perguntou de que tamanho eu queria o caule e as embrulhou num pedaço de plástico.
voltei pro carro e o amigo aliviado já embolava outras melodias.

reclamei, como de costume.
- absurdo o preço dos girassóis.
e segui calada o resto do caminho.

tive dificuldade, como de costume, para encontrar as chaves na bolsa.
a casa estava escura e sunny estava na porta, à espera nervosa de que alguém chegasse para fazer companhia. não dei atenção.

como de costume, joguei a bolsa na cama e tirei os sapatos. quis dormir logo.
fechei os olhos e, com tudo rodando, lembrei das flores.
levantei tonta e, na cozinha, enfiei os crisântemos numa tulipa.

coloquei água da torneira no copo de cerveja e larguei as flores repousando na cabeceira da cama.
sabia que, no dia seguinte, teria que jogá-las fora.
então pouco importava.

já se passaram dez dias.
e os crisântemos não desbotaram o amarelo.
continuam enfeitando, com a robustez delicada de suas coisinhas miúdas, as fotos empoeiradas dos porta-retratos.
como se já não fossem mortas, tiram o que precisam de sua própria água, nutrida com seu próprio gosto.

é que não há intempérie, ou tempo passado, que murche o que há vivo por dentro.
o que há de ser perene sobrevive, em insolente teimosia, às pálpebras de neblina.

já se passaram dez dias.
e não vi cair uma pétala sequer de flor.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

amai - ou o décimo terceiro soneto.

de madrugada, acordei ao pontual soar da campainha, e tentei ver o céu pela brecha da cortina.
procurei, com os olhos semicerrados, algum prenúncio de dia para me livrar dos lençóis.
não havia raio de sol sequer para fazer nascer cor
e o negro do asfalto se confundia com o denso firmamento.
afastei um pouco mais o pano com os pés e, em meio ao breu, fizeram-se notar duas fúlgidas estrelas, senhoras num céu que não tinha lua.
e apenas duas.

pensei nos meus filhos que, quando vierem a existir, talvez não conheçam estrelas.
nos animadores de desenho que pintarão os céus todos de preto, sem morada para os grandes reis do passado ou trilha para os tapetes voadores.
nos namorados que, deitados na areia, não terão cartilha iluminada para desenhar destinos.

ofuscadas pelo nosso brilho - artificial e excessivo -, se apagam.
as mais antigas já sabem: há tempos deixaram de protagonizar sonhos e poemas.
ruíram os natos marujos, que desvendavam, em suas cintilâncias, os mistérios do caminho.
e os românticos, que as prometiam em presentes de eternidade.

tanto já sabem que, tais quais as do cinema, preferem se esconder enquanto caem.
quem diria que morrer, um dia, foi instante de glória.
preparava-se o mais radiante véu e, no derradeiro fulgor, eram riscadas palavras de esperança.



a única coisa em que consigo pensar, e espero que dela me lembre quando chegar a hora, é que, se um dia eu voltar a ver uma estrela cadente, eu possa pedir que as nossas crianças conheçam momentos de apagar as luzes.

e que estejam mais perto do céu do que nós.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

hoje é sexta. e tanto faz. como todos os outros dias que. há tempos. tanto fazem. começam. terminam. e. no todo. tanto faz. se fazem ou não algum sentido.

terça-feira, 3 de abril de 2012

re-cita, vai.

Essa mania nasceu numa época em que ainda mal sabíamos quem éramos. Só nos sentíamos ligados, pulsantes, um ao lado do outro - com cócegas espalhadas por pernas, pescoço e barriga. Deitados na cama, passávamos madrugadas acordados, rindo, conversando sobre coisas que eu nem lembro mais o que. Embolados nos lençóis - com a meia-luz do abajur clareando de leve o quarto bagunçado -, cantávamos amores sem vergonha. Em um desses encontros de sábado, me disseste com convicção; a mão enfiada nos meus cabelos assanhados:

- Eu sei recitar poesia.

Olhei com cara de quem nem leva fé em talento de conquistador barato. Mas foste emendando um trecho no outro, rabo de estrofe em verso de introdução e, aos poucos, encenando poesias baixinho. A maioria de amor, apaixonadas. E nem para mim decoradas. Mas foi tom de voz, sotaque, ritmo lento e timbre adoçado. E aí, como quem se sente musa inspiradora, me derreti entre o teu braço e tuas costelas, que tanto me serviram de travesseiro. 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

ê vida vida amor brincadeira à vera

Com malabares e bolinhas se embaralhando habilidosos, amigos se divertiam em contos circenses. As risadas e o domingo faziam o treino descontraído, mas concentrado, parecer com brincadeira.

Uma menina bonita, dos cabelos curtinhos e blusa florida, levava no rosto um sorriso de mostrar todos os dentes. Os cabelos se balançavam com a brisa leve que refrescava o parque vez por outra, e o shortinho branco deixava à mostra um hematoma simpático no joelho. Dominava os pinos com habilidade e carisma desconcertantes, de deixar os olhos fixos e a boca um pouco aberta, enquanto os lançava alto no céu. 

Outra garota, que não brincava de circo, passou perto dela, sem chamar atenção; só para se aproximar. Fazendo os malabares se desencontrarem do corpo em um gesto de pausa, a de blusa florida esticou ainda mais o sorriso. E roubou-lhe um beijo bonito, de uma doçura que só um encontro bem grato pode oferecer. Por poucos segundos mantiveram, ali, em meio ao verde do parque, os lábios colados uns aos outros. 

Ao redor, casais continuaram a caminhar de mãos dadas, crianças cresciam seus castelos de areia, senhorinhas tricotavam fofocas nos bancos de madeira pintados de azul. Uma mulher gorda, de roupas negras, engessou uma cara de desgosto numa boca torta e sobrancelhas desalinhadas. E, no breve instante de um beijo, o estranhamento soaria como ofensa a quem, num fim de tarde, aproveitava a simplicidade de amar.



só que os sorrisos continuaram pintando lábios, agora molhados, tal qual tinta em rosto de palhaço, que exala alegria permanente. com os olhos fechados, elas nem puderam ver que, em algum lugar, havia alguém carregando carrancas sobre a face

sábado, 31 de março de 2012

duzentas palavras.

Destino a Felipe Resk de Queiroz, nascido em 17/05/1991, natural do Recife, meu sincero reconhecimento à sua superioridade intelectual. Nós, que tanto disputamos acertos e pagamos para ver nossas certezas se consagrarem, aceitamos mais um desafio. Desta vez, caro seria o pagamento: escrever, em duzentas palavras, a resignação perante a supremacia intelectual do outro - com a devida divulgação nas redes sociais. Pois bem. Venho, por meio desta curta explanação, admitir o quanto o referido rapaz é surpreendentemente audacioso. Do alto de sua inteligência, foi capaz de me ampliar a mente para possibilidades antes ignoradas. Me mostrou, com sua sabedoria, a importância de ser mais racional na vida. De saber esperar. E ouvir. Foi quem me ensinou, mesmo com dificuldades - devido às minhas limitações epistemológicas -, a ser um pouco mais humana. Gostaria de agradecer, prezado Felipe, por me permitir a convivência. Não fosse esse encontro, talvez eu nunca tivesse aprendido a ser um tanto menos orgulhosa. Deves estar pensando que não houve nada que eu tenha, de fato, aprendido contigo, tamanhas as divergências entre nós dois. Perdoa, meu bem, a inferioridade. Grande parte do que eu vou carregar comigo sempre, em cabeça e coração, nasceu ao teu lado.




No mínimo, posso falar sobre ter aprendido, mesmo que mal, a soprar "Eu sei que vou te amar" na flauta doce. Aprendi a ficar calada na torcida adversária dos estádios de futebol, mesmo que levando uns beliscões de vez em quando. Aprendi a fritar ovo com creme de leite e orégano, adicionando qualquer coisa de molho barbecue para dar um charminho. Não aprendi a fazer pipoca de panela, é verdade, muito menos o milkshake de Ovomaltine. Tive que aprender a gostar muito de filé à parmegiana, além de precisar aprender a acordar e ficar quieta, esperando teu sono se completar. Queria ter aprendido, galego, a ser um pouco menos azeda. A reclamar menos e a reconhecer mais os teus atos. Queria ter aprendido, também, a invadir menos os espaços que não me cabiam e a respeitar mais tuas vontades. Mas, burra que sou, pouco fiz para aprender qualquer coisa. Desculpa toda a estupidez. Quem sabe, um dia, eu possa ter um pouco do teu raciocínio afiado, que tanto me faz falta nos tabuleiros de dama e xadrez.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Sobre entender a si. E ao outro.

Ou sobre nunca entendermos nada.




Textos de Jean Baudrillard e Fernando Pessoa, respectivamente, narrados por Antônio Abujamra ao final do programa Provocações.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

imóveis.

e aí a gente se vê perdido nessa cidade sem ouvido pra escutar quem tem o que dizer. num recife preso, parado, entalado nos engarrafamentos do centro. cada qual encerrado num carro, empacado, desta vez, por quem não tem liberdade de trânsito. e é sempre tão confortável reclamar do tráfego, lento, com hálito de ar condicionado, afundado em banco acolchoado, isolado – onde caberiam mais quatro. sentados. aumenta o volume do som, cidadão, pra ver se abafa os gritos que esbarram nas janelas.